Juntar os caderninhos
Decidi, num rompante de praticidade e com uma fé enorme na premissa de que somos o que fazemos, começar a fazer todas as anotações de meus fazeres num caderno só.
No ano passado, eu me mudei e ainda tem algumas caixas atrapalhando o fluxo no novo apartamento. No meu quarto tem duas, de lava-louça e de vapza, com um texto escrito na tampa com caneta preta: cadernos Juliana. Ainda existem, porque não tenho muita certeza do que fazer com o conteúdo. São anos e anos de caderninhos com anotações variadas que refletem minha mente variada e que me lembram todos os dias da minha mais nove crise de identidade.
Eu não fui a criança do diário, muito menos a adolescente do diário. As agendas que comprei por anos começavam cheias de anotações e de maio em diante eram papel vazio jogado fora. Por outro lado, sempre fui a aluna das anotações. Quando fazia antropologia, meu caderno terminou no xerox, porque meus colegas pediam para estudar para as provas. Eu sempre fui boa de anotar.
Com a análise, que é, de certa maneira, um estudo de si, comecei a levar uma espécie de diário que é mais um compendio de anotações com segmentos intensos de muita escrita seguido de vales áridos com alguma retomada esporádica. Na pandemia preenchi uns tres cadernos de sonhos que nunca mais li. E nisso, estudando por anos e fazendo análise também, completei uma quantidade considerável de caderninhos que estão ali no chão do quarto, me esperando. Isso sem contar os cadernos quentes que estão na minha mesa e em minhas bolsas a todo momento, caso haja a necessidade de uma anotação.
Tentando decidir o que fazer com os cadernos, percebi que eles estão separados por práticas da minha vida: os da análise, os da superlatina, os da graduação/mestrado/doutorado, os do trabalho de transculturalidade, os de outros trabalhos que já tive, os das aulas de línguas, os da ficção, os da fotografía, o das receitas. Pior foi a constatação de que esse sistema é um reflexo de como eu tenho levado minha vida adulta. Me parece que não consigo conciliar o fato de que me dedico a coisas diversas e tenho interesses múltiplos. Acho que as redes sociais fazem também isso com a gente: personalidade profissional no LinkedIn, diario pessoal de imagens [ou imagem] no Instagram, caducidade no Facebook, textão no Medium ou Substack. E se a gente é o que a gente faz, fazer separado estava me dando uma espécie de esquizofrenia de mim.
Decidi, então, num rompante de praticidade e com uma fé enorme na premissa de que somos o que fazemos, clausurar todos os cadernos quentes, menos um, e começar a fazer todas as anotações de meus fazeres no mesmo. Tenho a intuição de que basta meus interesses e tarefas se encontrarem, se roçarem folha com folha, para eu sentir também que todas as coisas que eu faço fazem sentido em um pacote só: eu. Juntar os caderninhos como quem junta os caquinhos… com durex, mas pelo menos. Estou delirantemente confiante em que, após alguns meses de prática, uma língua nova vai emergir em mim e de mim, e na que eu possa ser um pouco cabeçuda académica, um pouco poética, um pouco analítica, outro pouco cotidiana e singela. E que, ojalá, eu consiga me sentir mais inteira. Veremos.
não te dá uma agonia esse monte de caderno? eu tenho uma vida inteira de caderno, o primeiro deve ser de sei lá, 1980. o que fazer com eles? os mais recentes são material de estudo. eu volto a eles na investigação dos processos emocionais (há progresso nos últimos anos!). um dia vou ter que jogar fora todo esse arquivo sobre mim que só ocupa lugar nas estantes. mas e a coragem?
Tenho milhares de caderninhos, completos, por completar, os que são pra desenho e escrevo mesmo assim, e os de escrita cheios de desenhos nas margens e nos espaços que dão. Não sei viver sem eles.